No texto da carta aos coríntios, capítulo três, versículo 17, encontramos a seguinte descrição "Ora, o Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade".[ Bíblia Sagrada. Bíblia harpa cristã. Letra grande. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p. 1138.] Durante muito tempo ouvi dizer que outrora – antes da conversão ao evangelho – todos éramos prisioneiros do mundo, e acorrentados em nossas próprias vicissitudes, não obstante, através da fé, nos foi possibilitada nova situação libertária.
Antes de converso procurei entender que precisava de algo, ou de alguém que mudasse minha vida. Realmente, andava muitíssimo consternado, e com muitas dúvidas sobre as coisas que aconteciam no dia a dia, que me afetavam com sensações de aprisionamento. São muitíssimas vezes que ouvi depoimentos que contêm estas palavras, e sem questionar muito, ou quase nada, acreditei piamente nisso, sem talvez criar algum tipo de objeção. Mas, parei para refletir como se dá este processo. O amado leitor nunca parou para pensar nisto?
Pois bem, Agostinho de Hipona contribui muito para externar o que passa nos momentos que denominamos de conversão. “Intellige ut credas, crede ut intelligas”, “compreender para crer, crer para entender” (AGOSTINHO apud GILSON, 1995, p. 144). Tento explicar esta ação evocando o momento da decisão pelo evangelho, o qual entendo ser acompanhados de reconhecimentos que alguém nos ajude, e seja poderoso nesta tarefa. Alguém que seja amoroso, e demonstre este amor por nós, sem interesses obscuros. Alguém sincero para nos entender e compreender, e têm todo o tempo do mundo.
Nossas solicitudes emocionais são admoestadas pela nossa razão. Se entendemos isto, então somos racionais, portanto, compreendemos, cremos e entendemos.Logo depois, nos lançamos em fé. No momento em que isto é feito, podemos entender mais coisas ainda, de acordo com o primeiro raciocínio, desta tomada de decisão,ocasionando a certeza. No entanto, que certeza é esta, que nos faz mudar de vida? Seria a certeza advinda da verdade? E, o que é verdade?
Dispõe-se de algumas prerrogativas conceituais. Dentre elas, podemos utilizar o termo conforme os romanos, veritas. Significaria a capacidade de confrontar o fato uma vez ocorrido de maneira a ser descrito em qualquer outro tempo, ou seja, se o determinado fato fosse descrito coerentemente, então seria verdade. De outra forma, a verdade também possui o conceito de aletheia, oferecida pelos gregos, que é desvelar aquilo que está encoberto, mostrar o nu, a coisa do jeito que é. A essência em detrimento da aparência. Mas, a última contribuição a ser vista aqui é a dos judeus, que descrevem a verdade como emunah, em referência a certeza de que determinado fato acontecerá. Uma firmeza voltada para o que ainda não é, mas certamente será. Então vemos que veritas traz sentido de passado, aletheia de presente, e emunah sentido de futuro. Passado, presente e futuro conjuntamente para entendermos o que é verdade (CHAUÍ, 2000, p. 94-107). E, existe alguma verdade incontestável?
Não obstante, precisamos partir do princípio que as verdades precisam ser testadas para se demonstrarem como tais. Como saberia que é uma verdade, se não passar pelo processo veritas, aletheia, ou emunah? Talvez você meu leitor, esteja pensando que as duas primeiras prerrogativas realmente passam por um processo probatório, mas a última não. Daí, eu gostaria de lembrar que só acreditamos naquilo que há possibilidade de acontecer. Se pensamos, logo existe, como diria o filósofo Renê Descartes (2011). Se crermos num milagre, é porque cremos que é possível, senão nem teríamos chance de reconhecê-lo. Isto também é um processo. Parece-me então que a verdade só se tornará absolutizada se houver o processo de contestação. Portanto, não há verdades incontestáveis, somente absolutas. Seria isto que compreendemos no momento em que decidimos por mudanças em nossas vidas?
Infelizmente, tenho observado que as verdades evangélicas são mais do que absolutas. São verdade únicas, excludentes, arbitrárias, passionais, intolerantes e muitas vezes, desacompanhadas de altruísmo, e alteridade. Acompanhadas de argumentos legitimadores. Se o outro tiver uma verdade diversa, passa a ser inimigo. Torna-se alienígena, e passa a ser totalmente estranho, quando poderia ser aquele que o completasse, ou aquele que o estimulasse a crescer, podendo ser o ponto de encontro entre o "eu" e "tu" e tudo o que há.
Parece-me que a verdade essencial está esquecida em favor da verdade individual provocada pela modernidade. Nos dias de hoje, a internalização individual de uma verdade seria dada como realidade para todos (HERVEIEU-LÉGER, 2008). Por isso, a convivência com indivíduos que se dizem libertos pela verdade, mas que se aprisionam em seus próprios desejos e prazeres. São promulgadas atitudes que mais se assemelham a neuroses infantis. Dependência do pai protetor com o interesse de satisfação de seus próprios desejos, provocando o nanismo como um todo (FREUD, 2013). Tolher o próprio crescimento significa estar tão preso, cego, acorrentado que seja impossível notar a incoerência de atitude.
Vejo que muitos se sujeitam aos desempenhos cultuais, vistos como divinizados, mas que deixam dúvidas de sua natureza espiritual. Muitas chamam a atenção, provocando a admiração, e o desejo de alguns, um dia possuírem tais condições. Não percebem seus próprios desvarios.
Percebo que a liberdade está no auto ajuste, reconhecendo seus erros de forma compreensiva e amorosa, procurando fazer o mesmo com o outro, bem ao lado. Não aparentando “empoderamentos” ou mágicas performáticas, evocadas como transcendentes. Talvez esteja aí, uma hipótese de tão grande demanda de desanimados, decepcionados que preferem o não convívio comungante (ALCANTARA, 2013). Também há os que se encontram em peregrinações, de comunidades em comunidades, buscando serem satisfeitos em seus próprios desejos (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Diante deste quadro, reflito sobre a liberdade oferecida pelo Espírito. Será que compreendemos o que é liberdade? Ou ainda não atingimos o real processo de conversão? Torço que você, meu leitor esteja vivendo uma real liberdade, pois nos dias de hoje, torna-se cada vez mais raro.
Até a próxima!
Referências
AGOSTINHO apud GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 144.
ALCANTARA, Sergio P. Gil de. Comunhão contemporânea. Mística, opções, decepções e cidadania protestantes. São Paulo: Perse, 2013, p. 81.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, 94-107.
DESCARTES, Renê. Discurso sobre o método. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 60
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Obras completas e outros textos. vol. 17. São Paulo: Cia. da Letras, 2013, p. 97.